Nos
primórdios do século XIX existia um tropeiro que percorria o Caminho das Tropas
ou Caminho de Viamão como também era chamado, levando cavalos, burros, mulas e
gado vacum do Rio Grande do Sul até a cidade de Sorocaba em São Paulo para
serem comercializados. Em uma destas viagens começou a chover sem parar provocando
enchente em parte deste percurso. Não conseguindo cruzar um dos rios com sua
tropa devido ao grande volume d’água ele ficou aguardando por alguns dias até
que a chuva cessasse e as aguas baixassem. Quando o tempo estiou e diminuiu o
volume d’água, então ele e seus peões cruzaram o rio com os animais e
continuaram a marcha com destino à cidade paulista. Por causa destes dias
parados esperando que o tempo melhorasse eles gastaram as provisões que deveriam
durar até o final da jornada. No segundo dia do reinicio da viagem, sem nada
para comer, somente algumas frutas silvestres, a fome começou a apertar e para
chegar no próximo vilarejo comprar viveres levaria mais ou menos um dia de
viagem. Ao passarem pela frente de uma casa onde residia uma viúva, o tropeiro
resolveu ir conversar com esta senhora para ver se conseguiria alguma coisa
para ele e seus camaradas saciarem a fome. A solitária mulher disse que
dispunha apenas de duas dúzias de ovos e poderia cozinhar para servi-los, então
o tropeiro perguntou se ele poderia pagar estes ovos no retorno de sua viagem a
Sorocaba, onde ele venderia a tropa e receberia dinheiro, pois naquele momento
ele não tinha um vintém sequer. A viúva notando que a situação dos viajantes
estava difícil concordou em dar este crédito a eles. Cada um dos quatro
tropeiros pegou seis ovos cozidos e comendo seguiram em frente. No dia seguinte
chegaram no povoado onde tinha uma casa comercial e conseguiram carne seca,
toucinho, torresmo, rapadura, pó de café, arroz, feijão, erva mate, querosene,
aguardente e mais algumas mercadorias, tudo isto trocados por uma vaca, pois
eles não tinham dinheiro e nem crédito neste local. Agora reabastecidos, continuaram
a viagem e alguns dias depois chegaram em Sorocaba. Após ter vendido toda tropa
por um bom dinheiro, o tropeiro começou
retornar à sua cidade para organizar outra viagem e trazer mais animais
para comercializar. Nesta viagem de retorno ele resolveu voltar por um outro
caminho, sobre o qual muitos tropeiros comentavam ser bem melhor porque era
mais plano, as pastagens eram mais viçosas, os vaus dos rios eram mais rasos e
tudo isto facilitava a condução das tropas proporcionando maior rapidez e menos
desgaste dos animais. Como ele acabou gostando desta nova rota, então passou a
utiliza-la para ida e retorno de suas próximas viagens, e assim passaram-se
mais trinta anos na labuta. Os anos passaram e o tropeiro tornou-se um homem
muito rico, possuía muitas propriedades, inclusive era um dos maiores criadores
de gado equino e vacum da região onde morava, mas o peso da idade e as
consequências da lida penosa que enfrentou em sua vida fizeram ele tomar uma
decisão: a de fazer a última vigem e depois do retorno ficar com a família
somente desfrutando a fortuna que ele tinha acumulado. Então pela última vez o
tropeiro e seus peões foram entregar mais esta remessa de animais. Por onde ele
passava ia anunciando, que esta seria sua última viagem como tropeiro. Quando
chegou em Sorocaba vendeu seus animais, recebeu o dinheiro e programou o início
do retorno para a manhã seguinte. Durante a noite, quando estava deitado,
começou a recordar das viagens que fez ao longo de sua vida, então veio à sua
mente aquela viagem que faltou comida e uma senhora conseguiu duas dúzias de
ovos para ele e seus camaradas satisfazerem a fome. Logo de manhã, após tomarem
café e desmontar o acampamento ele ordenou que seus peões retornassem
normalmente pelo mesmo caminho, porque ele iria voltar pela rota antiga onde
ele queria encontrar a viúva, caso ela ainda estivesse viva e de alguma forma
retribuir o favor que ela fez no passado. Tomou o rumo pelo antigo caminho,
depois de alguns dias cavalgando chegou na casa daquela mulher, parou em
frente, bateu palmas e viu que uma anciã saiu da casa, veio em sua direção e
perguntou o que ele desejava. O velho tropeiro perguntou se por acaso ela se
recordava dele. Ela olhou bem para seus olhos e disse: claro que me lembro, o
Sr. é aquele condutor de tropas para o qual eu arrumei duas dúzias de ovos a
trinta anos atrás e me prometeu pagar quando voltasse de viagem, e acredito que
hoje o Sr veio me pagar. Pois vim aqui para isso, falou o tropeiro. Então vamos
entrar em casa e tomar um chimarrão, convidou a senhora. Enquanto o tropeiro
tomava chimarrão, ela foi até o quarto e retornou com livro de anotações bem
grosso, colocou em cima da mesa e abriu, em seguida falou: hoje está fazendo
trinta anos três meses e vinte dias que o Sr levou aqueles ovos. Pasmo, o homem
disse: Nossa! A Sra tem tudo anotado no livro. Tenho, e por coincidência ontem
a noite eu atualizei meu cálculo com esta dívida que o Sr tem comigo. - Bem,
então a Sra me diga quanto eu tenho que lhe pagar. Antes de lhe dizer o total,
quero explicar como é que eu fiz este cálculo: Então o Sr levou duas dúzias de
ovos, certo? Certo, respondeu o homem. Se eu pusesse esses ovos para chocar eu
ia ter vinte e quatro pintinhos a mais no meu terreiro, certo? Certo, respondeu
o tropeiro. Vamos dizer que desses vinte e quatro pintinhos, dose fossem
galinhas e cada uma botando um ovo por dia durante um ano daria mais ou menos
3.600 ovos, e aí a gente punha para chocar, e continuaria assim até hoje, o
total está aqui no fim desta folha do livro. Para saber o quanto o Sr me deve é
só multiplicar o total dos ovos pelo preço atual. O homem deu uma olhada no
resultado daquela progressão geométrica e disse: se eu vender todas as minhas
propriedades e mais as economias que tenho, eu não consigo pagar esta dívida. -
Quer saber de uma coisa: eu não vou pagar a senhora, pois este seu método de
cálculo está errado. O senhor é quem sabe, se não me pagar eu vou entrar na
justiça para receber, falou a mulher. Sem mesmo despedir-se ou agradecer o
homem saiu da casa e foi embora. Passados alguns dias o tropeiro recebeu uma
intimação judicial para ir até o fórum tratar de assuntos de seu interesse.
Durante a audiência o juiz lhe expos o caso sobre a cobranças dos ovos que a
mulher tinha impetrado contra ele, e num breve parecer, o magistrado deu a
entender que ela tinha razão em cobrar tudo aquilo. Inclusive o juiz afirmou
que ela mostrou ser complacente quando deixava de incluir alguns ovos no
momento de fazer os cálculos, levando em conta que alguns deles podiam gorar,
quebrar, serem comidos por gralhas e lagartos, pintinhos e galinhas caçados por
cobras, gaviões, graxains, gato do mato etc. Então o juiz lhe deu um prazo até
dia seguinte as 14 horas para ele se defender. Diante desta situação
periclitante o tropeiro saiu do fórum e foi sentar-se em um banco da praça ali
em frente. Quando estava pensando que atitude tomar para resolver o problema,
parou em sua frente um jovem caipira e lhe perguntou: o Sr é aquele tropeiro
que sempre passava lá pelo rincão dos bugios? – Sou eu mesmo. E você quem é?
Pois eu sou filho do Zé Cutia que morava no rincão. – Me lembro bem do seu pai,
ele sempre nos oferecia um chimarrão quando passávamos por lá, e como está o
seu Zé Cutia? – Ele já é falecido. – Que Deus o tenha! Pois se ele ainda
vivesse eu ia pedir para ele vir testemunhar para mim sobre uma questão
muito séria. O caipira olhou bem para o tropeiro e disse: O Sr deve estar mesmo
com um problemão, pois o Sr está triste e aborrecido, eu me lembro que o Sr era
um homem sempre alegre e animado, o que está lhe acontecendo? Com muita
paciência o tropeiro contou toda sua história ao caipira que lhe ouviu
atentamente. Depois de pensar por alguns minutos o caipira disse: este seu caso
é bem fácil de resolver, me leve como testemunha que eu vou lhe defender e o Sr
não vai pagar o que a mulher está pedindo. Meio inseguro, mas sem outra opção o
tropeiro aceitou em leva-lo consigo ao fórum. O caipira despediu-se dizendo:
pode me esperar que amanhã as 14 horas vou estar lá com o Sr e o Juiz. Já no
fórum, o tropeiro falou ao juiz, que havia conseguido uma pessoa que vinha
defende-lo e estaria ali as 14 horas. Tudo bem, vamos aguarda-lo, respondeu o meritíssimo.
Quando o relógio badalou duas vezes, o juiz falou: seu defensor não apareceu no
horário marcado, mas como de costume eu vou dar mais dez minutos de tolerância,
caso ele não apareça darei o veredito a favor da reclamante. Passado o tempo, o
juiz ia bater o martelo, entrou porta adentro da sala de audiências o caipira
com as calças arregaçadas até a canela, todo suado e se abanando com um chapéu
de palha. Mas o que está acontecendo aqui? Indagou o juiz, se mostrando nervoso
e perturbado. Este é o meu defensor: disse o tropeiro. Após o juiz ter exigido
silencio no recinto começou a passar um corretivo no
defensor: O senhor não
chegou no horário marcado, veio com as calças arregaçadas e descalço, que não é
uma maneira correta de se apresentar diante de uma autoridade, e ainda suado e
se abanando, me explique tudo isso antes de considera-lo apto para o que o
senhor veio fazer aqui. – Eu estou suado porque eu estava perto do fogão
torrando feijão até agora pouco. Torrando feijão para que? Indagou o juiz. – É
que o tempo está para chuva e quero aproveitar para plantar esse feijão. Essa é
boa, o senhor disse que vai plantar feijão torrado, mas feijão torrado não
nasce. - Se o Dr tem tanta certeza que feijão torrado não nasce, então pode me
dizer se de ovo cozido nasce pinto? Pouco depois o juiz proferiu a sentença
condenando o tropeiro pagar somente duas dúzias de ovos cozidos ao preço do
dia.
Foto de tropeiros fazendo a travessia do gado no ano de 1799. (foto de - Claro Jansson) |
Foto de tropeiros fazendo travessia do gado no Rio Iguaçu no no ano de 1800. Do outro lado do rio está a cidade de União da Vitória Pr. (foto de- Claro Jansson) |
Comentários
Postar um comentário