BENTO CARTUCHO - UM CAÇADOR DIFERENTE

No ano de 1970 Edgar Mulmann, meu companheiro de pescaria e caçada gerenciava uma filial das Farmácias Minerva em Curitiba, inclusive foi nesta firma que eu consegui meu primeiro emprego e trabalhei até 1969 quando fui admitido em um laboratório da indústria farmacêutica. Como meu serviço era visitar médicos e farmácias, eu estava quase todos os dias tomando cafezinho com o Edgar. Nestes encontros nosso principal assunto era caça e pesca. Certo dia, meu companheiro, todo animado me informou que acabara de admitir o Sr Ataliba para desempenhar a função de balconista na drogaria. A animação do Edgar também me contagiou, pois, o Sr Ataliba era oriundo de Sengés, norte do Paraná e dizia que tinha alguns parentes trabalhando na Fazenda Morungava que poderiam conseguir permissão para caçarmos naquele lugar. Caçar na Fazenda Morungava era o maior sonho dos caçadores de perdiz e codorna porque além de grande, a caça era abundante. Quando chegou a temporada da caça o Edgar disse que já tinha tudo arranjado pelo Sr Ataliba, o nome e endereço de seus parentes que nós levaríamos até a fazenda com a devida licença para caçar. Ainda antes do mês de junho o Sr Ataliba tinha pedido demissão, não trabalhava mais na farmácia e ele não fez companhia nesta viagem, então convidamos mais o meu pai para ir junto, carregamos a Kombi do Edgar com os apetrechos de caça e os cachorros perdigueiros, partimos numa Sexta-feira pela manhã em direção a Sengés sonhando com a hora de chegar na Fazenda Morungava e caçar perdiz. Naquela época a estrada tinha asfalto somente até Ponta Grossa, o restante do trajeto estava sendo pavimentado o que fez atrasar a viagem até nosso destino. Chegamos bem no final do dia e fomos procurar os parentes do Sr Ataliba. Quando chegamos no endereço fomos informados pelos vizinhos que eles não mais residiam ali porque mudaram-se para Itararé. Sem os parentes do Sr Ataliba e sem licença para caçar na Fazenda Morungava nós estávamos se sentindo no mato sem cachorro, como diz o ditado. Embora, nós tínhamos barraca e todos os apetrechos para acampar preferimos ir para uma pousada na rodovia alguns quilômetros antes de Sengés porque naquele momento era inviável montar um acampamento, pois não tínhamos um lugar certo e já estava anoitecendo. A nossa intenção era pernoitar e na manhã seguinte ir até Arapoti, onde meu pai conhecia um fazendeiro e com certeza ele nos permitiria caçar em sua propriedade. Chegamos na pousada do Sr Maciel e fomos muito bem atendidos por ele e sua família, inclusive nos serviram um jantar com comida tropeira e vinho colonial. Tinha neste hotel um espaço bem cercado e casinhas onde nossos três cachorros perdigueiros passaram a noite com todo conforto. Neste estabelecimento, normalmente se hospedavam caçadores vindos de longe para caçar em fazendas da região, então o Sr Maciel sabia atendê-los, inclusive fornecendo água e comida aos cães de caça (polenta, pois naquela época não existia rações caninas). Durante o jantar o Sr Maciel veio nos fazer companhia e ficou sabendo da nossa situação sobre a caçada na fazenda Morungava, que não deu certo devido os parentes do Sr Ataliba terem se mudado para Itararé. O Sr Maciel nos informou que na mesma rodovia, voltando uns dois quilômetros em direção à Arapoti, na primeira casa, entre dois pinheiros bem grandes morava o Bento Cartucho (como era conhecido), filho de um fazendeiro cujas terras faziam divisa com a Fazenda Morungava. O Sr Maciel garantiu que se fossemos falar com o Bento, ainda naquela noite, poderíamos conseguir permissão para cassar na fazenda de seu pai, pois além de gostar de caça, fazia um bom tempo que ele não visitava sua família. Eram mais ou menos 21,30 horas de uma noite muito escura, quando com ajuda da luz do carro avistamos os dois pinheiros grandes e entre eles uma pequena casa a uns 15 metros da rodovia onde estacionamos a Kombi. Notamos que ainda estavam acordados, pois pelas frestas da parede podia se ver uma luz de vela ou lampião e a sombra de uma pessoa se movimentando no interior da residência. Batemos palmas e gritando oh de casa, logo a porta se abriu aparecendo o semblante de uma pessoa gorda e de baixa estatura. –É aqui que mora o Sr Bento? Perguntou meu pai.  – É, sou eu mesmo. E quem são vocês?  - Nós somos caçadores, moramos em Curitiba e viemos conversar com o Sr por indicação do Sr Maciel, dono do hotel. Respondeu meu pai. Tudo bem respondeu o Sr Bento, já vindo em nossa direção naquela escuridão que parecia um breu. Parou no portão do cercado que protegia a sua casa e começamos a conversar sem um ver a fisionomia um do outro até que contamos porque o Sr Maciel indicou ele para falarmos sobre o nosso problema de não ter onde caçar perdiz e codorna. Mas que bom, vocês caíram do céu. Disse o Sr Bento. – Pois eu estou precisando ir até a fazenda levar umas encomendas do meu pai e de alguns vizinhos dele, principalmente remédios para eles e alguns animais que estão doentes. – Então eu vou carregar alguns cartuchos para também caçar algumas perdizes. - Vocês passem aqui em casa lá pelas 6 horas, porque até a fazenda tem uns 15 quilômetros de estrada ruim, e tem que ir devagar para não estragar o carro, vamos caçar só na parte da manhã, temos que voltar depois do almoço, porque já estamos com quase dois meses de estio, mas amanhã à tarde é garantido que vai chover e para sair de lá com chuva não é fácil. Voltamos para a pousada e deixamos tudo pronto para sair no horário combinado, inclusive o Sr Maciel temperou uma carne para fazermos um churrasco para o almoço na fazenda do pai do Bento e a tarde retornaríamos para pernoitar e no Domingo voltar para nossas casas. Quando fomos apanhar O Sr Bento no horário combinado ainda estava escuro. Com a luz interna da Kombi acesa deu para ver que o Sr Bento era uma pessoa de baixa estatura (1.50 metro, talvez) e bem gordo. Estava de botas, uma japona bem grossa e um chapéu de pano enfiado na cabeça até as sobrancelhas. Ele carregou no carro duas sacolas grandes e bem cheias com as encomendas, sentou-se no banco trazeiro ao lado do meu pai, segurava uma espingarda cartucheira (fogo central), de um cano calibre 40. (Para se ter uma idéia,40 é o menor calibre das espingardas de caça. Do mais fino 40, 36, 32, 28, 24, 20, 16 até 12 o mais grosso, eu caçava com uma 20, meu pai e Edgar com 16 e usávamos cartuchos de papelão Super Veloz carregado em fábrica, e o Bento falou que ia carregar alguns cartuchos para caçar perdiz). Partimos em direção a fazenda quando o dia começou a amanhecer, ao sai da rodovia principal é que notamos como era ruim a estrada vicinal que deveríamos percorrer quase 15 quilômetros. Subidas e descidas com pedras e buracos, não tinha pontilhões, tínhamos que atravessar riachos por cima do seu leito, ora pedregoso, ora barrento, muitas porteiras no trajeto e o Bento fazia questão de descer do carro para abri-las e fecha-las, porque cada uma delas tinha um segredo ou macete. Quando o dia clareou, Bento olhou para os nossos cães perdigueiros (Pointer Inglês e Braco Alemão) deitados no assoalho da Kombi e elogiou por serem bonitos e bem tratados, mas disse que para entrar no banhado onde ele caçava perdiz estes cães não aguentariam muito tempo porque o capim é muito alto e cerrado. Ele disse que seu cão de caça está na fazenda, é um cão peludo que caça aves e qualquer bicho do mato também. – É um Setter Irlandês? – Perguntou meu pai. – Não, é um vira lata que eu ensinei desde pequeno, ele levanta a perdiz, eu atiro, e quando ela cai ele a pega e vem trazer
O Bimbo era bem parecido com este
 
 para mim. Eu caço a cavalo porque naquele banhado o capinzal é alto e tem muita cobra urutu, meu cachorrinho já foi picado duas vezes, a sorte que sempre temos soro antiofídico na fazenda. Meu pai indagou o Bento sobre a espingarda dele: Você caça com essa 40, não acha que é um calibre muito fino para caçar perdiz? - Não acho fina não. É muito difícil eu errar um tiro com ela. O Bento colocou a mão no bolso da japona, tirou oito cartuchos que ele havia carregado e disse: Se hoje o cachorro levantar oito perdizes eu abato as oito. Essa espingarda está comigo há mais de 20 anos, eu a ganhei de presente do meu padrinho quando eu tinha 19 anos de idade e dei baixa do serviço militar. Tirando o chapéu da cabeça e nos mostrando sua testa, Bento falou: a único coisa ruim que esta espingarda fez foi deixar minha testa deformada com esta cicatriz profunda e o apelido de Bento Cartucho que ganhei por causa do acontecido. Certa ocasião eu inventei de carregar um cartucho com pólvora de bala de fuzil que eu trouxe do quartel, era pólvora branca. Preparei um tiro com bastante pólvora, coloquei três grãos de chumbo perdigoto e atirei em uma tábua de madeira bem grossa para ver se a espingarda era cortadeira mesmo. Só me lembro de ter puxado o gatilho e alguns dias depois estar acordando em um hospital, rodeado de enfermeiras e médicos. Na hora do tiro a espingarda se abriu e o cartucho saltou para traz entrando na minha testa, lá no hospital em Ponta Grossa o Dr Amadeu Puppi me operou e tirou o cartucho que estava metade enfiado na minha cabeça e eu levei quase um ano para começar a ficar bom novamente. Hoje eu cuido quando vou carregar os cartuchos, só uso pólvora preta Elefante 3 F na medida certa, essa não tem perigo, apenas faz muita fumaça na hora do tiro. Quando o Bento descia para abrir porteiras, nós pasmos comentávamos esses assuntos bizarros, admirando sua coragem de continuar caçando com a mesma espingarda que quase lhe tirou a vida. Eram mais ou menos 8,30 horas quando chegamos na casa do Sr José, que nos deu boas vindas oferecendo um saboroso chimarrão e demonstrando muita alegria por estar recebendo a visita do seu filho Bento. Em seguida, Bento pediu ao seu irmão que encilhasse a mula com a qual ele ia caçar perdiz no banhado de capinzal alto, fosse avisar os vizinhos que ele trouxe as encomendas, também pediu que deixasse um fogo aceso para assar o churrasco mais ou menos ao meio dia. Neste momento seu cachorro peludo, preto e branco, chamado de Bimbo veio até perto de nós, sem latir, cheirou nossos perdigueiros e demonstrou ser um animal bem-educado. Depois de tomarmos algumas cuias de chimarrão, Bento mostrou o local onde eu, meu pai e Edgar deveríamos caçar. Era uma coxilha bem vasta que talvez não conseguíssemos percorrer ela toda até ao meio dia, caçando. Se distanciamos uns dos outros e saímos à procura de caça, mas começou a ventar muito, e quanto mais se subia para o alto o vento ficava mais forte atrapalhando a caçada porque isso fazia as codornas pularem muito longe, fora de ponto de tiro. Algumas horas mais tarde nós três se reencontramos novamente e começamos a lamentar por causa da ventania que estava atrapalhando a caçada, além de anunciar a chuva que o Bento estava prevendo desde o dia anterior. O Edgar tinha caçado duas codornas, meu pai também duas, eu apenas uma. Do alto da coxilha onde estávamos dava para avistar o Bento caçando na parte baixa, no banhado que tinha uns 30 alqueires de um capim alto e cor dourada. Por umas duas vezes, não escutei os tiros devido à distância, mas avistei sair fumaça da espingarda dele, sinal que tinha atirado (caçava com pólvora preta que faz fumaça) e em seguida ele se arcava em cima da montaria para apanhar a caça que o Bimbo lhe trazia. Resolvemos voltar para almoçar e ir embora, porque se a chuva vier, para sair daquele lugar não é só difícil, é impossível. Quando chegamos de volta na sede da fazenda o Bento já estava lá e tinha caçado seis perdigões que o Bimbo encontrou, não errou nem um tiro. Alguns vizinhos que vieram para buscar as encomendas aproveitaram a oportunidade e trouxeram suas cadelas para serem castradas pelo Bento que era considerado um veterinário naquela região. Colocando um saco de couro pela cabeça até a metade do corpo da cachorra e pedindo para alguém segurar bem firme, Bento ajoelhava-se ao lado do animal e com um pequeno canivete fazia duas incisões na barriga, enfiava seu dedo minguinho que tinha uma unha bem comprida entre as vísceras do pobre animal e lhe retirava os ovários, passava cinza no local e soltava estas criaturas que gritando iam para debaixo do paiol. Para nós foi uma cena chocante, mas para aquele pessoal parecia normal e não davam nenhuma importância ao sofrimento dos bichinhos. Almoçamos o churrasco e apressamos o retorno porque a chuva estava prometendo vir meio logo. Quando chegamos na casa do Bento, a chuva começou a cair aos poucos, ele nos deu as perdizes que caçou, ofereceu a fazenda para caçarmos novamente quando quiséssemos e pediu desculpas por ter causado um mal-estar quando castrava as cachorras. Bento alegou que se aquelas cachorras viessem a criar, seus filhotes iam sofrer muito mais, pois aquele pessoal não sabe e não tem condições de tratar bem os animais. Fomos para a pousada onde foi preparado um jantar para nós e a família do Sr Maciel com as codornas e perdizes, polenta, salada de radiche regado com um excelente vinho colonial. Como eu trabalhava em um laboratório da indústria farmacêutica visitando médicos no Paraná e Santa Catarina, em Ponta Grossa eu conhecia o Dr Amadeu Puppi, certo dia eu comentei sobre o acidente com o Bento, e ele lembrou e comentou a delicada situação em que o caçador se encontrava com aquele cartucho na cabeça. Quanto ao simpático Sr Maciel da pousada descobrimos que ele era tio avo do chefe de escritório que trabalhava comigo no laboratório.
Braco Alemão
Pointer Inglês
Perdiz recheada a caçador com polenta, radiche e vinho.

Setter Irlandês



 

Comentários

  1. Muito bom paulo, parabéns um sonho uma caçada dessa, eu mesmo possuo uma 40 kkkk agora uso pólvora branca em medidas minimas 2/3 de uma carga indicaçada para 36.

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  2. Uma pena que não fabriquem mais a pólvora elefante 3f melhor pólvora que utilizei bons tempos aqueles na fazenda da minha falecida avó Mariana

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